O racismo nosso de cada dia

06/08/2019 11:21:41
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Certa vez uma bela mulher negra se casou com um príncipe ruivo. Foi notícia no mundo todo, como se sabe. Um belo dia, a (agora) duquesa, deu à luz uma criança. Como uma parte das pessoas do globo terrestre, eu já era fã da duquesa, antes do romance, por amar a série na qual ela era a mocinha.

Quando saiu a notícia do casamento real, eu já tinha passado meses analisando seu cabelo, seu sorriso, seu batom, o modo de andar, as pernas finas e os diversos estilos de saia lápis que ela usava no majestoso escritório de advogados da inteligentíssima série “Suits”.

A bela Megan (para mim, a meiga e esforçada personagem “Rachel”) tornara-se nobre. Um grande feito mundial, diga-se, relativamente comparável ao do cidadão Barack Obama. Bem, e daí?

Na manhã seguinte do dia 8 de maio, quando essa criança real nasceu, eu estava dentro de um táxi na Avenida Atlântica, em Copacabana, pensando em alguma outra coisa ao passar pela orla. No volante, Zenildo: carioca de 40 anos, negro, bonachão, conversador, 1,90 m de altura e mais de 100 kg.

Havia, claro, grande expectativa mundial. Eu, particularmente, por minha estreita ligação com “a Rachel”, vivia uma curiosidade surda a respeito, imaginando secretamente o impacto de amor nas estruturas da humanidade com o evento de uma criança negra na família real britânica.

Sou branca, preciso dizer. Não sou alva e também estou longe de ser morena, tenho cabelos escuros e enrolados, e uma quantidade incontável de sardas e pintas.

No táxi, a caminho do aeroporto, de manhã cedo, no trânsito, meu amigo Roberto, que me dava uma carona, abriu despreocupadamente o jornal, enquanto discutia um pouco de política com seu motorista preferido. No peculiar movimento de seus braços para esticar as páginas e dobrar as folhas do papel, meus olhos captaram a foto do evento da véspera: o bebê real, um menino.

Naquela altura, o sexo já não era novidade. Então, imediatamente, cega de curiosidade, enfiei os olhos na foto e, da minha boca, pulou a seguinte fala: “Nasceu… qual é a cor? Ah, é clara”. Eu sei que havia um tom de decepção na minha voz – nos meus sonhos, ele seria negro de pele -, mas o que aconteceu a seguir, me calou. Até hoje.

Zenildo também emudecera. Eu, no banco de trás, percebi o discretíssimo tremor que tomou todo o seu corpanzil. Na hora, achei melhor não esclarecer os auspiciosos fundamentos do meu comentário. Se eu fosse me explicar, cairia em novas incorreções verbais.

E elas me atormentam. Como quando virei para um jovem colega da aula de teatro com quem tenho pouca intimidade e falei, suavemente: “Tudo bem, neguinho?” Só Deus sabe quanto calor coloquei na voz para falar essa frase. Mas o sorriso frouxo e a silenciosa reação dele foram nítidos. E eu vi que algo estava fora do lugar.

Enfim, não consegui esquecer os dez segundos no táxi do Zenildo, como não consigo esquecer nenhum dos outros momentos em que estou, sim, sendo racista. Como me custa escrever isso! Posso dizer, seguramente, que compreendi a delicadeza desse comportamento racista, sim, que me sai pelos poros, sem que eu tenha quase consciência ou domínio, nesse exato momento, ao escrever essas linhas.

É difícil demais escrever essa palavra quando sou eu quem a pratica. Mais tranquilo escrever sobre o racismo dos outros, da sociedade. Só que: essa cultura de dominante e dominado está no sangue de cada um, infelizmente.

É como um homem que não quer ser machista, não aprova atitudes machistas, mas, sim, ele sabe, que uma hora ou outra, vai se comportar como um. E precisa reconhecer e entender o próximo passo a seguir, se quer, de fato, mudar sua cultura.

Eu tive que parar o texto, deixá-lo dormir, porque abriu-se um leque de reflexões que mal consigo esboçar. Ainda que não tenha consciência disso. Quando a gente fala de contraste de cor é uma coisa; mas quando essa cor rejeitada é a PELE da pessoa… Aí fica bem fácil compreender melhor o quão sensível é essa dor.

Ainda que tenha as melhores intenções. Ainda que fique indignada com os comentários contrários à Disney, por ter escolhido uma negra para fazer “A Pequena Sereia”. Ainda que meu coração tenha muito sentimento de humanidade. Ainda que eu não seja mais radical de gueto nenhum. Ainda que continue achando extremamente importante essa coisa de “fazer o bem e amar o próximo”. Escrevo esse texto para compreender.

Obs.: Caso você, branco como eu, não entenda a sutileza do que estou dizendo, permita-se refletir um pouco mais, antes de partir para o ataque. Pensa aí com você mesmo. Sobre o mundo de cultura branca onde eu e você vivemos. Se você não é branco, tenta não me “acusar” de racista e vir com raiva, tá bom? Tenta aí. Deixa que eu assumo e me comprometo em mudar de comportamento. Aliás, esse texto cumpriu seu papel neste quesito.

“O racismo nosso de cada dia”
Quando a gente fala de contraste de cor é uma coisa; mas quando essa cor rejeitada é a PELE da pessoa… Aí fica bem fácil compreender melhor o quão sensível é essa dor. @flaviaol
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