O PALACETE DE MADAME SANT’ANNA

21/08/2023 18:11:27
Compartilhar

Publicado em 10/05/2018

Fotos: Arquivo Leyla Lopes e Fundação D. João VI de Nova Friburgo

É notório o fascínio que a casa de Madame Sant´Anna sempre exerceu sobre as pessoas, quer pela beleza de suas linhas arquitetônicas, quer pelo ar de mistério que sempre a envolveu. O fato de poucos terem tido o privilégio de frequentar aquela propriedade, aguçava a imaginação da maioria das pessoas. Dentre as muitas balelas que corriam a seu respeito, predominava a que dizia ser a casa mal-assombrada, decorada com cortinas pretas.   

A verdade é que pelo fato do citado casarão ser constituído de muitos cômodos, possuía muitas portas e janelas, que para evitar o trabalho de abri-las e fecha-las, diariamente, muitos permaneciam fechados, o que contribuía para que a casa estivesse sempre na penumbra. Assim, as cortinas cor de vinho e as verdes, ambas em tonalidades escuras, pareciam pretas, naquele ambiente. 

Ao transpor aquele portão de ferro (que ao ser aberto, tocava uma sineta, anunciando a chegada do visitante), ao atravessar aquele amplo jardim, com muitas cameleiras, eu o fazia, l-e-n-t-a-m-e-n-t-e. Queria vivenciar aquela sensação – misto de vaidade e de orgulho – por fazer parte daquele “clube privê”, por poder frequentar aquele solar, distinção reservada a poucos privilegiados.

Minha avó paterna era vizinha próxima de Mme. Sant’Anna, residindo em frente à “Estação da  Leopoldina” (atual sede da Prefeitura Municipal), onde, hoje, se encontra o prédio que leva o seu nome, o “Edifício Nede Lopes”. Seu filho Salim Lopes (meu pai, ainda solteiro, recém-formado) morava com sua mãe e era médico de família da mencionada Madame.

Com o casamento de meu pai, mais uma geração viria a dar prosseguimento àquela velha amizade. Sempre que minha mãe visitava Mme. Sant´Anna, eu a acompanhava.  Ir àquela vivenda, na minha concepção infantil, era penetrar num castelo misterioso, repleto de magia e de encantamento.

Causava-me forte impressão a figura da Madame: solene,  aristocrata, loquaz, excêntrica.  De cabelos muito pretos, presos num coque, vestia-se com sobriedade e elegância, mantendo-se trajada, impecavelmente, mesmo na intimidade do seu lar. Não era pessoa orgulhosa e sim, dotada de uma personalidade marcante.

D. Catarina Iracema Valentim (nome de solteira) Sant´Anna (nome do primeiro marido) Rocha (do segundo esposo) muitas vezes, ao entardecer, podia ser vista, em seu imenso jardim, empunhando uma longa mangueira, a regar suas variadas plantas, onde sobressaiam as cameleiras em flor. Madame Sant´Anna e sua herdade se encaixavam, harmoniosamente, como pedras de um jogo de  quebra-cabeça, como peças de uma engrenagem.

Eu não sabia dissociar a proprietária da propriedade e, ao visitar a primeira, também, visitava a segunda. Subia a escada, lentamente, degrau por degrau. Ao tocar a campainha, ficava torcendo para que custassem a me atender, a fim de poder apreciar, por mais tempo, todos os detalhes da varanda, como o entrelaçado da balaustrada e o rendilhado lambrequim que guarnecia os beirais.  A varanda, além de abranger toda a parte da frente do prédio, ainda se estendia pelas laterais.

Ter acesso ao seu interior era ver-se introduzido no túnel do tempo e transportado, imediatamente, para o final do século XIX, em meio ao mobiliário requintado, da época. Na sala de visitas destacavam-se o piano e as escarradeiras de porcelana, entre o sofá e as poltronas; na de jantar, as cristaleiras com louças de porcelana, cristais, faqueiros e baixelas de prata.  Naquele casarão, tal como no “Castelo da Bela Adormecida”, tudo permaneceu inalterado, por longos anos, num profundo sono. Desde a sua construção entre 1892 a1894, que o tempo só passara do lado de fora de seus muros e paredes.

Segundo o saudoso amigo Othon Gonçalves Pereira, o imóvel foi edificado na Rua General Argolo nº 208 (atual Alberto Braune), por determinação da Sra. Amélia Dumans, viúva de João Dumans, uma fazendeira com propriedade em “terras quentes” (denominação dada, na época, às regiões de temperaturas elevadas como Duas Barras, Sumidouro, Itaocara, São Fidelis etc.), com a finalidade de ali instalar o seu filho Otávio que contraíra tuberculose. Naquele tempo, não havia medicação específica para tão grave enfermidade, e a única esperança é que o organismo reagisse, num local de clima favorável, o clima das montanhas.

A casa, rodeada de varandas, era muito ventilada, tendo sido erguida no meio de um amplo terreno, com muitas plantas e um belo pomar, com a finalidade de oferecer ao jovem doente, ar puro e fresco. Infelizmente, o empenho daquela  dedicada mãe foi em vão. O seu amado filho só desfrutou das comodidades daquela vivenda, por uns quatro anos, falecendo no dia 18 de dezembro de 1898, sendo sepultado no Cemitério do Santíssimo Sacramento onde, até hoje, se encontram os seus restos mortais.  Para consolo de D. Amélia, ainda lhe restou um casal de filhos.

Ainda segundo o Sr. Othon, no início do Século XX, o casarão foi alugado, transformando-se na Pensão Marinho e, por volta de 1908, foi vendido para o Sr. Luís Ferreira de Souza Moraes Sant´Anna que se casara com a Srta. Catarina Iracema Valentim, tornando-se a Madame Sant´Anna.  Ali nasceriam e seriam criadas as oito filhas do casal: Dora, Licete, Silvia, Heloísa, Zyta, Léa, Déa e Néa.

O Sr. Sant´Anna era um comerciante português, viúvo, conhecido por “Seu” Guarany, por estar estabelecido com a mercearia “Guarany Store”, especializada em conservas e bebidas finas importadas, biscoitos, chocolates, na atual Praça Dermeval Moreira, onde se encontra o banco” Santander” (conforme relato do citado Sr. Othon).  Ele era proprietário de vários imóveis, inclusive de um casarão de dois pavimentos, todo em madeira, situado na esquina da Praça Paissandu com a atual Rua Conselheiro Julius Arp (no local, na atualidade, o Edifício Santana). O mencionado prédio era todo em madeira, daí ser conhecido por “Chalé  de Tábuas” e, por muitos anos , foi uma pensão para tuberculosos.     

No ano de 1940, o Sr. Sant’ Anna faleceu na cidade de Niterói, onde se encontrava em tratamento de saúde.

Alguns anos depois de enviuvar, Madame Sant’Anna se casava com o Sr. Genésio Rocha, que deixou de ser funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina, atendendo a um pedido de sua esposa. Para que o “Seu” Rocha preenchesse as suas horas de ócio, foram adquiridas máquinas de fazer botões encapados,  plissê, caseado, ponto ajour, ponto Paris.  Os seus trabalhos, pela sua perfeição, se tornaram muito conhecidos na cidade, e ele passou a ter uma freguesia considerável.

 Ao ser criada a Diocese de Nova Friburgo, em 7de agosto de 1960, quando D. Clemente Isnar vindo do Rio, chegou à nossa cidade para ser empossado, foi de imediato recepcionado por Mme. Sant´Anna, nos salões de seu palacete, quando foi servido um coquetel a todos os presentes.  Depois, ele seguiu a pé com sua comitiva, em procissão, pela Alberto Braune até à Catedral de São João Batista, acompanhado pelos fiéis.

Mme. Sant´Anna e “Seu”Rocha estiveram casados por uns vinte e poucos anos, quando ela faleceu, no dia 3 de janeiro de 1967, sendo sepultada em Niterói. Ele morreu alguns anos depois.  

Daí em diante, Néa Valentim Sant´Anna foi a última e solitária moradora do solar.  De cabelos louros, olhos esverdeados, se trajava com tons que realçassem a alvura de sua pele. Não dispensava os calçados de saltos finos e altos que, quando usados com a saia justa preta, acrescentavam alguns centímetros à sua estatura mediana. Nos lábios, o permanente colorido de um suave sorriso iluminava a sua simpática fisionomia.              

 De todas as irmãs, foi a única que permaneceu solteira. Chegou a ficar noiva, mas desfez o compromisso, pois casando, teria de mudar-se de Nova Friburgo, e sua mãe envelhecida, dava sinais de necessitar dos cuidados de uma filha dedicada. Ela residiu no palacete até fins da década de 1980 quando, ao sentir que a sua saúde estava combalida, foi para Niterói, ficar em companhia de suas irmãs.

Minha filha chegou a conhecê-la, pois sempre que visitava a amiga Néa, ela me acompanhava.  Eu cheguei a frequentar o casarão, que foi demolido em 1995, por cinco décadas.  No seu lugar, atualmente, na Av. Alberto Braune 208, está sendo construído um edifício.

Do palacete, agora, só resta a recordação da sua fachada, que lembrava uma arquitetura em estilo oriental: misto de templo indiano com palácio mourisco.  Mas as cúpulas laterais prateadas, bem como a meia cúpula central, brilhando ao sol, continuarão a reluzir, para sempre, no mundo das minhas lembranças e da minha saudade. 

Compartilhar