Apesar de extrema importância na vida das pessoas, o tema espiritualidade permanece ainda desconectado do campo dos estudos da psique e de seus métodos científicos e tradicionais de tratamento. Ainda persiste a visão do homem moderno aliada ao ser racional e científico, excluindo-se da psique seu aspecto intuitivo e subjetivo. É como se o homem, partido ao meio em polaridades inversas, porém não antagônicas, recortasse de si a metade completar intangível de sua consciência, e proclamasse que toda a verdade acerca do conhecimento de si mesmo e do mundo, e de tudo que existe à sua volta, só pode ser considerada pela percepção lógica e tangível da realidade. Ou seja, o homem divorciou-se de sua metade conceituada “inconsciente”, colocando sobre sua tutela o pesado fardo da patologia. Ou seja, tudo o que envolve o inconsciente é doentio, e tudo o que evolve do consciente é salutar.
Doença é uma palavra que se origina do latim dolentia, e significa “aquilo que nos causa dor”. Se refletirmos sobre a etimologia desta palavra, entenderemos que é justamente o ato da partição, da ruptura e do corte aquilo que nos causa dor, e não as partes constituintes do todo em si mesmas. A exclusão de metade de nossa psique só pode então nos tornar seres doentios, ou seja, seres que permanentemente causam dor, a si mesmos e ao seu redor. Vivemos numa permanente doença, presumindo possuir uma verdade absoluta, que é logicamente e francamente ilusória. Como possuir tal totalidade acerca de uma verdade, se excluímos e desprezamos a contraparte daquilo que somos e que nos é complementar? Tamanha verdade só poderia, portanto, ser considerada em sua parcialidade.
Como consequência desta síndrome da separatividade (Pierre Weil 1986), produziu-se uma neurose coletiva que prolifera uma série de novas doenças e epidemias, haja vista o momento pandêmico em que vivemos. Nossa verdadeira doença é a repressão da dimensão espiritual da existência. Apesar da difícil relação entre ciência e espiritualidade, vislumbramos no início deste século um maior interesse da ciência em investigar o papel da espiritualidade nas abordagens psicoterápicas, principalmente oriundas de pesquisas internacionais.
Esta mudança se deve a diversos fatores, como o crescente reconhecimento do valor e resultado das abordagens espiritualistas e holísticas na saúde física, emocional e mental de pacientes; o acolhimento de tendências multiculturais; e o desenvolvimento de metodologias que buscam operacionalizar os recursos ofertados pelas práticas espiritualistas. Podemos exemplificar a expansão da ferramenta da meditação mindfullness, que já se insere em grandes corporações, confirmada em sua eficácia por pesquisas científicas sérias.
Espiritualidade é um conceito que não abraça uma definição universal. Podemos encontrar na literatura seus vários sentidos: uma forma de encontrar propósito e significado à vida (Pinto, 2009); um sentimento de pertencimento e ligação ao universo, ou a um todo maior, e uma conexão com o sagrado e o transcendente (Ribeiro, 2009); ou até mesmo como característica ou qualidade do que tem ou revela intensa atividade religiosa ou mística (Oxford Languages, 2021). Apesar das confusões e entrelaçamentos conceituais, a palavra espiritualidade distingue-se dos conceitos de religião ou religiosidade. Estes sim focalizam crenças, práticas e rituais que colaboram, promovem ou auxiliam o contato do indivíduo com o sagrado e o transcendente. Vamos, portanto, considerar a palavra espiritualidade relacionando-a a uma busca pessoal por sentido e transcendência, distinguindo-a da o vocábulo religiosidade, compreendido como um dos caminhos que promovem o encontro ao objeto buscado pelo sentido inato de espiritualidade que é inerente a todo ser humano.
Outros caminhos que nos levam a alcançar o sentido de plenitude e de união com o Todo indivisível são aqueles oferecidos pela psicoterapia e terapias de uma maneira geral. Naranjo (1990) advoga que há uma relevância espiritual na psicoterapia, e que a própria espiritualidade é terapêutica. Há um recente e crescente enamoramento entre essas duas disciplinas. A psicoterapia e as terapias holísticas tocam em temas que pertencem à dimensão do humano, não apenas à história pessoal do sujeito, mas também em todo o envolvimento e fucionamento sistêmico, que acrescentam significado a esse universo holossistêmico ao qual pertencemos no presente, e que nos constitui em essência como resultado do passado. Resignificar a existência, buscando o autoconhecimento, o autoaperfeiçoamento como meta existencial, o progresso interior em direção a um modelo mais harmônico de consciência, a redução dos conflitos internos e externos destrutivos que nos adoecem, uma melhor compressão e apreensão do outro e do sentido da vida, o desenvolvimento de valores humano; tudo isso são temas comuns à ambas as ciências da psicologia, da religião, da visão holística, assim como da filosofia.
Sem excluir ou diminuir qualquer abordagem, nosso intuito é apenas trazer a cura para a consciência humana, promovendo uma re-união e valorização de todas estas artes como um caminho mais amplo em direção aos estados de Unidade que tanto buscamos. Conciliando e agregando novamente os opostos fragmentados de nossa consciência, poderemos possivelmente ampliar o processo psicoterapêutico e terapêutico para se reconhecer o sagrado na vida, facilitando a integração indivíduo-todo como forma mais elevada do existir.
Este artigo é uma singela maneira de introduzir uma série de artigos posteriores que fundamentarão o enlace definitivo do estudo e tratamento da psique com a espiritualidade, que de fato, nunca estiveram separadas. Todo aquele que se aprofundou no estudo e observação da alma(psique) humana, encontrou também sua espiritualidade, assim como outros que seguiram pelo caminho místico da espiritualidade também encontraram cura, individuação e integração. Todo trajeto escolhido inevitavelmente nos leva ao mesmo fim. Terapias e espiritualidade são as duas polaridades de um só conceito, e o religare é a amálgama universal que os transforma novamente em unidade.