Um dia de treino, o peixe podre no aeroporto e um lugar chamado Brasil

01/12/2017 10:25:09
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Você vai pra academia. Vai pro treino, como se diz. Treinar, alcançar coisas novas, novos limites. Mas antes você faz um aquecimentozinho. Aliás, como o cardiologista lembrou, precisa treinar aeróbico também. Então você vai pra esteira, vai ficar uns minutos a mais. Você fica. Esqueceu o fone de ouvido ao sair correndo de casa, mas são só vinte minutinhos hoje. Porque o que você quer, é pegar peso.

As TVs estão ligadas sem som. Você não consegue não ler a legenda do canal de notícias ininterruptas que tem um slogan igual ao da emissora líder, mas como igual não pode ser, então o slogan é um pouco menos igual e você conclui que o slogan é realmente sofrível. “Quem terá escrito essa bosta, com aquela vírgula?”, você pensa quase em voz alta. E você se lembra, e pensa a respeito do slogan da emissora líder, e conclui que ele “é bom, mas não chega a ser perfeito”, enquanto aumenta a velocidade da esteira.

Ao seu lado, uma morena de boné – não, de viseira – e corpo curvilíneo está correndo forte há mais de dez minutos. Você olha discretamente para o lado, como quem quer alcançar com o olho a tela do outro aparelho de TV exibindo uma programação clássica de atletas ao ar livre enfrentando as mais altas ondas do planeta, mas o ângulo não lhe é favorável. Restam-lhe as notícias, enquanto você se esforça para cumprir o trato com o cardiologista. De relance, você capta um dado no monitor da esteira da morena. Ela corre na velocidade 9.5. Um dia você chega lá, ainda que esse dia não pareça, remotamente, próximo.

Aí você lê uma notícia que você pensa que não está lendo. A esteira atingiu – pra você – velocidade de cruzeiro para uma caminhada: 6.5. “Ibama descarta 10 toneladas de peixe podre mantido por 5 anos no Aeroporto de Guarulhos”. Você olha pro outro lado, não queria ter lido aquilo. Desse lado a parede é espelhada e você vê tudo ao mesmo tempo: a morena que corre, os monitores de TV, a notícia cuja legenda permanece lá, o repórter explicando algo que você não ouve mas entende. Como pode uma carga de peixe podre ficar 5 anos armazenada? Esse é o pensamento que você não quer que invada a sua cabeça, você não quer pensar nisso, nessa loucura que é ser brasileiro, não quer imaginar as explicações das autorid ades que estão ali – você pensa – apenas defendendo o polpudo salário que certamente arrematam.

Então você finge que não é contigo. Não é tão difícil, isso. Foca na esteira. A morena corre, você também já vai decolar, vai dar um tiro de 5 minutos, sem paciência para peixe podre, sem paciência para armazenamento de carga perecível por 5 anos, sem paciência para o rótulo de “Brasil é assim mesmo”, você está prestes a aumentar a velocidade da esteira quando a morena ao seu lado faz um comentário banal, mas é sobre o peixe. “Como é que pode isso?”. Já se passaram quase 5 minutos que começou a reportagem, ela provavelmente estava pensando no assunto por duas centenas de segundos. Você concorda e diz: “Pois é, eu tava pensando nisso”, porque é o que se diz nessas horas, mas a verdade é q ue você estava quase se livrando do peixe podre e de tudo o que essa notícia representa, quase encontrando um jeito de esquecer que ouviu essa lambança embalando o treino.

Você dá o tiro e começa a correr como uma lebre, não sabia que seu corpo estava hoje assim tão leve, nada indicava que fosse ser tão fácil e correr faz retornar aquele prazer de alcançar e de viver. Agora é a morena que desacelera e vai reduzindo até parar e desce da esteira e faz um aceno de corpo educado, uma meia fala, um simples tchau, foi gentil. Então a corrida te embala e você esquece, e seus olhos livres focam de novo nas letras, focam na legenda da TV que mostra, pela ordem: o tamanho do desemprego em dezembro, o aumento do Índice de Confiança do Consumidor – e você pensa como pode o país ter 12 milhões de desempregados e se sair com um aumento nesse índice, e começa a pensar no que diabos deve ser um índice com um nome desses que o engravatado da vez explica como se fosse astro de cinema mudo.

É hora de desacelerar a esteira, você pensa. Você olha o relógio, tem mais 5 minutos ali, porque nos outros quarenta seu negócio é puxar ferro. A TV volta a captar seu olho, mas agora é um desenho azul: uma pirâmide mostra que 889 mil pessoas no país ganham mais de 27 mil reais por mês, enquanto mais de quarenta milhões ganham menos de 800 reais, o que é uma aberração, mas uma aberração cotidiana e, como que para provar, a reportagem mostra imediatamente a imagem de um trabalhador de rua, de pele morena, escura, pouco cabelo, pouco banho, uma camiseta rota que um dia foi branca e que pode muito bem ter sido descarte de uma daquelas 889 mil pessoas que ganham mais de 27 mil reais por mês, a maioria delas em São Paulo. Não, a reportagem não disse nada sobre São Paulo, is so foi você que pensou,  enquanto baixava a velocidade da esteira para 5.0, 4.0, 3.0, 2.0, 1.0.

– Marcão! – você grita para o amigo que vê chegando. – Bora ali malhar braço! – você diz isso e, aí, sim, não está mais pensando no Brasil e seus erros. Sem pensar, agora você experimenta, finalmente, uma calorosa sensação: enfim, o pensamento sumiu


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